Mia começou bem sua manhã de sexta-feira, acordando cedo. Entretanto, embora tenha ido para a cama cheia de otimismo e excitada com as possibilidades que se projetavam a sua frente, foi novamente golpeada pela dura realidade de quão difícil seria cada momento. Mais uma vez acordou em uma cama vazia, numa casa silenciosa; havia, porém, um pequeno atalho. Pela primeira vez, em mais de dois meses, acordara sem a ajuda de um telefonema. Como todas as manhãs, ajustou sua mente ao fato de os sonhos com Harry e ela juntos, que haviam povoado sua mente nas dez horas anteriores, serem apenas isso - sonhos.
Tomou uma chuveirada e vestiu-se confortavelmente com seu jeans preferido, tênis e uma camiseta rosa-bebê. Eleanor estava certa a respeito de seu peso, seu jeans, outrora apertado, mal se sustentava com a ajuda de um cinto. Fez uma careta diante de seu reflexo no espelho. Estava feia. Tinha olheiras, seus lábios estavam rachados e mordidos e seu cabelo parecia um desastre. A primeira coisa a fazer era ir até o salão e rezar para que conseguissem dar um jeito nela.
- Jesuuus, Mia! - exclamou seu cabelereiro Cléo. - Olhe para o seu estado! Pessoal, abram alas! Abram alas! Tenho uma mulher aqui em situação crítica! - Ele piscou para ela e começou a afastar as pessoas do caminho. Puxou uma cadeira e empurrou-a para dentro dela.
- Obrigada, Cléo. Estou me sentindo realmente atraente agora - resmungou Mia, tentando esconder seu rosto cor de beterraba.
- Bem, não se sinta, porque você está em pedaços. Samanta, prepare para mim o de sempre; Carlos, pegue o papel laminado; Tamara, pegue minha bolsinha de truques lá em cima e diga a Paulo para não se dar ao trabalho de pegar seu almoço, ele vai cuidar do meu cliente de meio-dia. — Cléo dava ordens a todos ao redor, sacudindo loucamente as mãos, como se estivesse prestes a realizar uma cirurgia de emergência. Talvez fosse verdade.
- Desculpe, Cléo, eu não pretendia bagunçar o seu dia.
- Claro que pretendia, querida, por que mais você viria correndo aqui na hora do almoço, numa sexta-feira, sem marcar hora? Para contribuir para a paz mundial?
Mia mordeu o lábio com ar de culpa.
- Mas eu não faria isso por ninguém mais, a não ser por você, querida.
- Obrigada.
- Como você está? - Ele descansou seu pequeno e magro traseiro sobre a bancada, encarando Mia. Cléo devia ter cinqüenta anos; apesar disso, a pele era tão imaculada e o cabelo, claro, tão perfeito, que ele não parecia ter um dia a mais do que 35. O cabelo cor de mel combinava com a pele cor de mel, e sempre se vestia de forma impecável. Era o bastante para fazer uma mulher se sentir um lixo.
- Terrível.
- É, é o que parece.
- Obrigada.
- Bom, pelo menos quando sair daqui, vai ter algo consertado. Eu cuido de cabelos, não de corações.
Mia sorriu com gratidão ante o jeito estranho e rápido com que ele demonstrou seu entendimento.
- Mas Jesuuus, Mia, quando você chegou na porta da frente, viu a palavra ”mágico” ou ”cabeleireiro” diante do salão? Você devia ter visto a aparência da mulher que entrou aqui hoje. Vestida como uma garotinha. Não muito longe dos sessenta, eu diria. E me entregou uma revista com a Jennifer Aniston na capa. ”Quero ficar desse jeito”, ela disse.
Mia riu da impressão que ele causava. Suas expressões faciais e suas mãos, tudo se movia ao mesmo tempo.
- ”Jesuuus”, falei, ”sou um cabeleireiro, não um cirurgião plástico. O único jeito de você ficar assim é recortar a fotografia e pregar na sua cabeça.”
- Não! Cléo, você não disse isto a ela. - O queixo de Mia caiu de surpresa.
— Claro que disse! A mulher precisava ouvir, então não é certo ajudar? Deslizando aqui para dentro vestida como uma adolescente. A aparência dela!
- Mas o que ela disse? - Mia secou as lágrimas de riso dos olhos. Não ria assim havia meses.
— Folheei as páginas da revista e topei com uma foto linda da Joan Collins. Disse que aquela era a praia dela. Ela pareceu feliz o bastante.
— Cléo, provavelmente ela estava apavorada demais para dizer que detestou!
- Ah, quem se importa? Tenho amigos suficientes.
- Não sei como - riu Mia.
- Não se mexa - ordenou Cléo. De repente, Cléo ficou terrivelmente sério, os lábios apertados de concentração, enquanto separava o cabelo de Mia a fim de prepará-lo para a tintura. Foi o bastante para que Mia desatasse a rir novamente.
- Por favor, Mia - disse Cléo exasperado.
- Não consigo evitar, Cléo, você deu a partida e agora não consigo parar! - Cléo interrompeu o que estava fazendo e observou-a divertido.
- Sempre achei que você ia acabar num hospício. Ninguém nunca me dá ouvidos.
Ela riu mais ainda.
- Oh, sinto muito, Cléo. Não sei o que há de errado comigo, simplesmente não consigo parar de rir. - O estômago de Mia doía de tanto rir, e ela estava consciente de todos os olhares curiosos que estava atraindo, mas não podia evitar. Era como se todas as risadas perdidas nos dois meses anteriores estivessem saindo de uma só vez.
Cléo parou de trabalhar e virou de costas para o espelho; apoiou-se na bancada e pôs-se a observá-la.
- Não precisa se desculpar, Mia, ria o quanto quiser, você sabe que dizem que rir faz bem para o coração.
— Eu não ria assim há séculos — disse ela entre risos.
- Bem, você não tem tido muito do que achar graça, suponho - ele deu um sorriso triste. Cléo também adorava Harry. Eles provocavam um ao outro sempre que se encontravam, mas ambos sabiam que era tudo brincadeira e se gostavam muito. Cléo arrancou-se de seus pensamentos, despenteou o cabelo de Mia alegremente e plantou um beijo no alto da cabeça dela. — Mas você vai ficar bem, Mia Kennedy — assegurou ele.
— Obrigada, Cléo — disse ela acalmando-se, comovida com a preocupação dele. Cléo voltou a trabalhar em seu cabelo, adotando sua expressão divertida de ligeira concentração. Mia riu com nervosismo outra vez.
— Agora você está rindo, Mia, mas espere até que eu, por acidente, deixe sua cabeça cheia de listras coloridas. Vamos ver quem vai rir então.
- Como vai Jamie? - perguntou Mia, mudando habilmente de assunto, antes que se sentisse envergonhada de novo.
- Ele me deu um fora - disse Cléo, calcando com força o pedal da cadeira, lançando Mia para o alto, fazendo-a sacudir loucamente no assento.
— O-oh Cl-éo, si-iin-to mui-iii-to. Voo-cês dois e-ram tão in-críii-veis jun-tos.
Ele parou de bombear e fez uma pausa.
- Bem, não somos tão in-críii-veis juntos agora, garota. Acho que ele está saindo com outra pessoa. Certo. Vou colocar dois tons de louro; uma cor dourada e o louro que você tinha antes. Senão vai ficar daquela cor inconveniente, reservada apenas às prostitutas.
- Cléo, desculpe. Se ele tiver um mínimo de juízo, vai perceber o que está perdendo.
- Ele não deve ter juízo nenhum; nós nos separamos dois meses atrás e ele ainda não percebeu. Ou percebeu e está adorando. Estou de saco cheio; já aturei o bastante dos homens. Vou simplesmente virar heterossexual.
- Cléo, isto é a coisa mais estúpida que já ouvi...
*~*
Mia precipitou-se para fora do salão satisfeita. Sem Harry ao seu lado, alguns homens olharam em sua direção, algo que lhe pareceu estranho e a fez se sentir pouco confortável; então correu para a segurança de seu carro e preparou-se para a casa de seus pais. Até então o dia estava correndo bem. Fora uma boa medida visitar Cléo. Mesmo de coração partido, ele se esforçara para fazê-la rir. Mia tomou nota daquilo.
Parou no meio-fio diante da casa de seus pais em Portmarnock e respirou fundo. Para surpresa de sua mãe, a primeira coisa que Mia fizera pela manhã fora ligar a fim de combinarem uma hora para se encontrar. Eram três e meia naquele instante e Mia estava sentada do lado de fora no carro, com o estômago dando voltas. Além das visitas que os pais lhe haviam feito nos dois meses anteriores, Mia dificilmente passara um tempo apropriado com a família. Não queria toda a atenção voltada para ela; não queria perguntas indiscretas a respeito de como estava se sentindo e o que ia fazer a seguir sendo disparadas contra ela o dia todo.
De qualquer forma, era hora de deixar o medo de lado. Eles eram sua família. A casa de seus pais situava-se do lado oposto ao mar, na estrada para a praia de Portmarnock, a bandeira azul testemunhando a limpeza do lugar. Ela estacionou o carro e fitou o mar do outro lado da estrada. Havia morado ali desde o dia em que nascera até o dia em que se mudara para viver com Harry. Adorava acordar ao som do oceano agitando-se contra as rochas e do canto excitado das gaivotas. Era maravilhoso ter o mar como jardim da frente, especialmente durante o verão.
Na ocasião, Eleanor vivia na esquina um pouco adiante, e nos dias mais quentes do ano as garotas aventuravam-se pela estrada com suas melhores roupas de verão, de olho nos rapazes mais bonitos. Eleanor com seu cabelo castanho, pele clara e seios enormes. Eleanor era escandalosa, gritando e chamando-os. Mia apenas ficava calada e namorava com os olhos, fixando-os em seu garoto favorito e não os movendo até que ele notasse.
Mia e Eleanor realmente não haviam mudado tanto desde então. Ela não pretendia ficar muito tempo, somente conversar um pouco e pegar o envelope, que concluíra que talvez fosse de Harry. Estava cansada de se castigar, conjeturando sobre seu conteúdo, de modo que estava determinada a acabar com sua silenciosa tortura. Respirou fundo, tocou a campainha e plantou um sorriso no rosto para que todos vissem.
- Oi, querida! Entre, entre! - disse sua mãe, com a expressão acolhedora e carinhosa que Mia simplesmente queria beijar sempre que via.
- Oi, mãe. Como vai? - Mia entrou e foi confortada pelo odor familiar do lar. - Está sozinha?
— Estou, seu pai saiu com Declan para comprar tinta para o quarto dele.
- Não me diga que você e papai ainda estão pagando tudo para ele!
- Bem, seu pai pode estar, mas eu certamente não. Ele está trabalhando à noite agora, então pelo menos tem algum dinheiro. Embora não vejamos um centavo dele sendo gasto em nada aqui. - Ela riu e levou Mia para a cozinha, onde ligou a chaleira.
Declan era o irmão mais novo de Mia e o bebê da família, assim, sua mãe e seu pai achavam que ainda precisavam mimá-lo. Se alguém visse o ”bebê”: Declan era uma criança de 22 anos, estudando produção de cinema na faculdade e constantemente trazia uma câmera de vídeo nas mãos.
- Que emprego ele conseguiu agora? - Sua mãe levantou os olhos para o céu.
— Ele se juntou a uma banda qualquer. O Peixe Orgástico, acho que é como se chamam, ou algo assim. Fico enjoada só de ouvir falar nisto, Miranda. Se ele contar mais uma vez quem estava nas gravações prometendo contratá-los e quão famosos vão se tornar, vou ficar louca.
- Pobre Deco, não se preocupe, no final das contas ele vai encontrar alguma coisa.
- Eu sei, e é engraçado porque de todos vocês, crianças encantadoras, é com ele que menos me preocupo. Ele vai encontrar seu caminho.
Elas levaram as canecas para a sala de estar e acomodaram-se diante da televisão.
- Você está incrível, querida, adorei o cabelo. Acha que Cléo cuidaria do meu uma hora dessas, ou estou muito velha para o estilo dele?
- Bem, desde que você não queira o corte de cabelo da Jennifer Aniston, não vai ter problemas. - Mia contou a história da mulher no salão e ambas rolaram de rir.
— Bem, não quero a aparência da Joan Collin, então vou evitá-lo.
- Seria prudente.
- Teve sorte com algum emprego? - A voz da mãe soou despreocupada, mas Mia podia perceber que ela estava louca para saber.
- Não, ainda não, mãe. Para ser honesta, sequer comecei a procurar; não sei exatamente o que quero fazer.
- Você está certa - a mãe assentiu. - Leve o tempo de que precisar e pense sobre o que gostaria de fazer, ou de outra maneira vai acabar se precipitando e arranjando um emprego que detesta, como da última vez.
Mia surpreendeu-se ao ouvir aquilo. Embora sua família sempre houvesse sido uma fonte de apoio durante anos, descobriu-se emocionada com a abundância desse amor.
O último emprego de Mia fora trabalhar como secretária para um tratante inútil e inflexível no gabinete de um procurador. Havia sido forçada a deixar o emprego quando o traste não conseguira entender que precisava de algum tempo afastada do trabalho para estar ao lado de seu marido agonizante. Agora precisava procurar outro. Quer dizer, outro emprego.
Aquela altura, parecia inimaginável ir para o trabalho pela manhã. Mia e sua mãe relaxaram, conversando a intervalos por algumas horas, até que Mia finalmente tomou coragem de perguntar pelo envelope.
- Oh, claro, querida, esqueci completamente. Espero que não seja nada importante; está ali há muito tempo.
- Logo vou descobrir.
Elas despediram-se e Mia saiu o mais rápido que pôde. De pé na grama, observando a areia e o mar dourados, Mia correu as mãos sobre o envelope. Sua mãe não o descrevera muito bem, já que não era de forma alguma um envelope, mas um pesado pacote marrom. O endereço fora datilografado sobre uma etiqueta, portanto ela não conseguia nem mesmo imaginar sua origem. E acima do endereço havia duas palavras grandes em negrito
- A LISTA.
Seu estômago ensaiou uma pequena dança. Se não fosse de Harry, Mia teria finalmente de aceitar o fato de que ele partira, partira completamente de sua vida, e precisava começar a pensar em viver sem ele. Se fosse dele, estaria diante do mesmo futuro, mas ao menos poderia agarrar-se a uma lembrança recente. Uma lembrança que teria de durar por toda a vida.
Seus dedos trêmulos rasgaram delicadamente o lacre da embalagem. Ela virou o pacote de cabeça para baixo e sacudiu seu conteúdo. Caíram dez diminutos envelopes separados, do tipo que se esperaria encontrar em um buquê de flores, cada um com o nome de um mês diferente. Seu coração saltou algumas batidas quando ela viu a caligrafia familiar em uma folha solta sob a pilha de envelopes.
Era de Harry.
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3/10 - 29.07.2013 - xoxoxo
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