Mia está deitada na cama, apagando e acendendo o abajur com um sorriso no rosto. Ela e Eleanor tinham ido fazer compras no Bed Knobs e no Broomsticks em Malahide e ambas finalmente concordaram a respeito do bonito suporte de madeira entalhada e do quebra-luz de cor creme, que combinava com a mobília de madeira creme do quarto principal (claro que elas haviam escolhido o mais ridiculamente caro, seria errado quebrar a tradição).
E embora Harry não estivesse fisicamente com ela enquanto o comprava, sentiu que haviam feito a compra juntos. Ela havia corrido as cortinas do quarto a fim de testar sua nova mercadoria. O abajur de cabeceira suavizava o aposento, fazendo-o parecer mais aquecido. Quão facilmente aquilo poderia ter acabado com suas discussões noturnas, mas talvez nenhum dos dois quisesse terminá-las. Haviam se tornado uma rotina, algo familiar que os fazia se sentir mais próximos. Mia daria qualquer coisa naquele momento por uma daquelas ligeiras discussões. E sairia alegremente de sua cama aconchegante por ele, caminharia alegremente sobre o chão frio por ele, alegremente se machucaria no pé da cama enquanto tateava no escuro de volta ao leito. Mas esse tempo havia passado.
A voz de Gloria Gaynor em will survive arrastou-a de volta ao presente, quando percebeu que seu telefone celular estava tocando.
-Alô?
- Bomdia, amiga, estou em caaaasa! - gritou uma voz familiar.
— Oh meu Deus, Clara! Eu não sabia que você estava voltando para casa!
- Bem, na verdade, nem eu, mas fiquei sem dinheiro e decidi fazer uma surpresa para todos vocês!
- Uau, aposto que mamãe e papai devem ter ficado surpresos.
- Bem, papai deixou cair a toalha de susto quando saiu do chuveiro. - Mia cobriu o rosto com as mãos.
— Clara, você não fez isso! — censurou.
- Nada de abraços no papai quando o vi! - zombou Clara.
- Tsk, tsk, tsk. Mude de assunto, posso imaginar a cena - disse Mia.
- Bem, estou ligando para dizer que estou em casa, obviamente, e que mamãe está organizando um jantar esta noite para comemorar.
— Comemorar o quê?
- O fato de eu estar viva.
- Oh, OK. Pensei que você poderia ter alguma novidade ou algo especial.
- Que estou viva.
- O...K. Então, quem vai?
- A família inteira.
- Eu não mencionei que vou ao dentista arrancar todos os meus dentes? Sinto muito, não posso ir.
- Eu sei, eu sei, eu disse a mesma coisa a mamãe, mas não nos reunimos há séculos. Quando foi a última vez que viu Richard e Meredith?
- O bom e velho Dick; bem, ele estava em plena forma no funeral. Tinha um monte de coisas inteligentes e reconfortantes para me dizer como ”Já pensou em doar o cérebro dele para a ciência médica?” É, ele é um irmão tão fantástico...
- Meu Deus, Mia, desculpe. Esqueci o funeral. - A voz da irmã mudou. - Sinto muito não ter comparecido.
— Clara, não seja boba, ambas decidimos que era melhor que você ficasse - disse Mia energicamente. - É muito caro ficar indo e voltando da Austrália, então não vamos trazer isso de volta, certo?
-OK.
Mia mudou rapidamente de assunto.
- Então, quando você diz toda a família quer dizer...?
- Sim, Richard e Meredith estão trazendo nossos pequenos e adoráveis sobrinhos. E você vai ficar satisfeita de saber que Jack e Abbey estão vindo; Declan vai estar presente de corpo, mas provavelmente não de mente, mamãe, papai e eu, claro, e você virá.
Mia gemeu. Ainda que se queixasse de sua família, tinha um ótimo relacionamento com seu irmão Jack. Ele era somente dois anos mais velho que ela, portanto sempre haviam sido muito chegados enquanto cresciam, e ele fora muito protetor em relação a ela. A mãe os chamava de seus ”dois capetinhas”, porque estavam sempre planejando alguma maldade perto de casa (tais maldades eram normalmente dirigidas a seu irmão mais velho, Richard). Jack era parecido com Mia tanto na aparência quanto na personalidade, e ela o considerava o mais normal de seus irmãos. Isso também contribuiu para que ela se entendesse com sua companheira de sete anos, Abbey, e quando Harry estava vivo os quatro muitas vezes se encontravam para jantar e beber. Quando Harry estava vivo... Deus, aquilo não parecia certo.
Clara era uma questão totalmente diferente. Jack e Mia estavam convencidos que ela vinha do planeta Clara, população: um. Clara era parecida com seu pai, pernas compridas e cabelo escuro. Tinha várias tatuagens e piercings no corpo, em conseqüência de suas várias viagens pelo mundo. Uma tatuagem para cada país, seu pai costumava brincar. Uma tatuagem para cada homem, Mia e Jack estavam convencidos.
Claro que o mais velho da família, Richard (ou Dick, como era chamado por Jack e Mia), desaprovava toda aquela bobagem. Richard nascera com a séria doença de ser um eterno velho. Sua vida girava ao redor de regras, regulamentos e disciplina. Quando jovem, possuía um amigo; eles tiveram uma briga aos dez anos; depois disso, Mia não conseguia lembrar-se dele levando ninguém em casa, tendo namoradas ou saindo para se socializar. Para ela e Jack, era um mistério o local onde ele encontrara sua igualmente triste mulher, Meredith. Provavelmente numa convenção anti-alegria.
Não que Mia tivesse a pior família do mundo, eles simplesmente eram uma mistura estranha de gente. Esses enormes confrontos de personalidades em geral levavam a discussões nas horas mais impróprias ou, como os pais de Mia preferiam chamá-las, ”discussões pesadas”. Eles conseguiam se entender, mas se todos realmente tentassem e mantivessem seu melhor comportamento.
Mia e Jack encontravam-se freqüentemente para almoçar ou beber, apenas para se informar da vida um do outro; interessavam-se um pelo outro. Ela apreciava sua companhia e, mais que um irmão, o considerava um amigo. Ultimamente não se viam muito. Jack a entendia bem e sabia quando ela precisava de seu espaço.
As únicas vezes que Mia tomava conhecimento da vida do irmão mais moço Declan era quando ligava à procura dos pais e ele atendia. Declan não era um grande conversador. Era um ”garoto” de 22 anos que ainda não se sentia absolutamente confortável na companhia de adultos. Portanto, Mia na verdade nunca sabia muito sobre ele. Um bom garoto; simplesmente tinha a cabeça um pouco nas nuvens.
Clara, sua irmãzinha de 24 anos, estivera fora o ano inteiro e Mia havia sentido saudades. Elas nunca haviam sido o tipo de irmãs que trocam roupas e brincam a respeito de rapazes, seus gostos diferiam muito. Mas como as duas únicas meninas numa família de irmãos, elas estabeleceram uma ligação. Clara era mais chegada a Declan, ambos sonhadores. Jack e Mia sempre haviam sido inseparáveis quando crianças e amigos quando adultos. Isso excluía Richard. Ele ficava de fora, solitário na família, mas Mia suspeitava que ele gostava do sentimento de estar separado daqueles a quem não conseguia absolutamente entender. Mia estava com medo de suas palestras sobre tudo que era maçante, seu interrogatório insensível a respeito da vida dela e a completa sensação de frustração que experimentaria, comentário após comentário, à mesa de jantar. Mas era um jantar de boas-vindas para Clara e Jack estaria lá; Mia podia contar com ele.
Portanto, Mia esperava ansiosamente por aquela noite? Absolutamente não. Mia bateu relutante à porta da casa de sua família e imediatamente ouviu o som de pés pequeninos voando na direção da entrada, seguido de uma voz que não poderia pertencer a uma criança.
- Mamãe! Papai! É tia Mia, é tia Mia!
Era o sobrinho Timothy, o sobrinho Timothy. A alegria do garoto foi subitamente esmagada por uma voz austera. (Embora fosse incomum o fato de o sobrinho estar contente com sua chegada; as coisas deviam estar especialmente chatas ali.)
- Timothy! O que eu disse a você a respeito de correr pela casa? Você pode cair e se machucar, agora fique de pé ali no canto e pense sobre o que eu disse. Fui clara?
- Sim, mamãe.
- Por favor, Meredith, ele vai se machucar no tapete ou no sofá estofado?
Mia riu consigo mesma; Clara definitivamente estava em casa. Justo quando estava pensando em fugir, a porta se abriu e lá estava Meredith. Seu rosto parecia ainda mais azedo e pouco receptivo do que de costume.
- Mia . - Ela acenou com a cabeça em reconhecimento.
- Meredith - imitou Mia.
Uma vez na sala de estar, Mia procurou por Jack, mas, para sua decepção, não o viu em lugar algum. Richard estava de pé diante da lareira, vestindo um suéter surpreendentemente colorido; talvez estivesse se soltando naquela noite.
Permanecia com as mãos nos bolsos, balançando para frente e para trás, do calcanhar à ponta dos dedos dos pés, como um sujeito prestes a dar uma lição de moral em alguém. A lição de moral era dirigida ao seu pobre pai, Frank, que se sentava pouco à vontade na poltrona favorita, parecendo um aluno de colégio sendo castigado. Richard estava tão absorto em sua história que não viu Mia entrar. Mia lançou de longe um beijo ao pobre pai, não querendo tomar parte na conversa. Seu pai sorriu para ela e fingiu agarrar o beijo.
Declan estava arriado no sofá, usando um jeans rasgado e camiseta do South Park, da série de TV, tragando furiosamente um cigarro, quando Meredith invadiu seu espaço e o advertiu contra os perigos do fumo.
— Sério? Eu não sabia disso — disse ele, manifestando um interesse preocupado enquanto se livrava do cigarro. O rosto de Meredith pareceu satisfeito, até que Declan piscou na direção de Mia, alcançou o maço mais uma vez e imediatamente acendeu outro. - Diga mais alguma coisa, por favor, estou morrendo de vontade de saber. - Meredith o encarou com desgosto.
Clara escondia-se atrás do sofá, jogando pipoca na parte posterior da cabeça do pobre Timothy. Ele estava de pé no canto do aposento, olhando para a parede e achava-se assustado demais para se virar. Abbey parecia fincada ao chão e era comandada pela pequena Emily, de cinco anos, e por uma boneca com ar diabólico.
Ela capturou os olhos de Mia e articulou silenciosamente em sua direção: ”Me ajude”.
- Oi, Clara. - Mia aproximou-se da irmã, que se pôs de pé num salto e deu-lhe um grande abraço, apertando Mia com um pouco mais de força que o habitual. - Bonito cabelo.
- Gostou?
- É, rosa é realmente a sua cor. - Clara pareceu satisfeita.
- Foi o que tentei dizer a eles - informou ela, desviando os olhos e encarando Richard e Meredith. - Então, como está minha grande mana? - perguntou Clara baixinho, acariciando o braço de Mia.
- Oh, você sabe - Mia deu um sorriso cansado -, vou levando.
- Jack está na cozinha ajudando mamãe com o jantar, caso esteja procurando por ele, Mia - avisou Abbey, arregalando os olhos e murmurando ”Me ajude” mais uma vez.
Mia ergueu as sobrancelhas na direção de Abbey.
— Verdade? Ele não é ótimo por ajudar mamãe?
— Oh, Mia, você não sabe o quanto Jack adora cozinhar, ele simplesmente ama. Nunca é o bastante - disse ela sarcástica.
O pai de Mia riu consigo mesmo, o que interrompeu as investidas de Richard.
- O que é tão engraçado, pai?
Frank remexeu-se nervosamente no assento.
- Acho simplesmente extraordinário que tudo isto aconteça em um único tubo de ensaio minúsculo.
Richard lançou um olhar de desaprovação ante a estupidez de seu pai,
— Sim, mas você tem de entender que esses são tão minúsculos, pai, que é especialmente fascinante. Os organismos se combinam com o... - E ele por aí foi, enquanto seu pai se acomodava de volta na cadeira e tentava evitar o contato visual com Mia.
Mia entrou na cozinha na ponta dos pés, onde encontrou o irmão à mesa, com os pés para o alto apoiados em uma cadeira, mastigando alguma coisa.
- Ah, aqui está ele, o chef em pessoa.
Jack sorriu e ergueu-se.
- Aí está minha irmã preferida. - Ele torceu o nariz. - Vejo que também veio a esta coisa amarrada. - Ele caminhou na direção dela e estendeu os braços para oferecer-lhe um de seus grandes abraços de urso. - Como vai? - perguntou baixinho em seu ouvido.
- Estou bem, obrigada. - Mia deu um sorriso triste e beijou-o na face, antes de se virar para a mãe. - Querida mãe, estou aqui para oferecer meus serviços neste momento extremamente tenso e atarefado de sua vida - disse Mia, plantando um beijo na bochecha afogueada da mãe.
- Oh, não sou simplesmente a mulher mais sortuda do mundo por ter filhos tão preocupados como vocês? - disse Elizabeth com sarcasmo. Deixe-me dizer, vocês podem escorrer a água daquelas batatas ali.
- Mãe, conte sobre a época em que você era menina, durante a fome, e as batatas haviam acabado - disse Jack, exagerando no sotaque irlandês.
Elizabeth golpeou-lhe a cabeça com o pano de prato, brincando.
- Com certeza foi antes do meu tempo, filho - disse ela, seguindo com a brincadeira.
— Claro que sim — respondeu Jack.
- Num foi não, de jeito maneira - disse Mia, aderindo ao jogo. Ambos pararam e olharam para ela.
- Desde quando existe em irlandês uma expressão como ”de jeito maneira”? - riu sua mãe.
- Ah, calem a boca vocês dois. - Mia juntou-se a seu irmão à mesa.
- Espero que vocês dois não estejam planejando nenhuma maldade esta noite.
Eu gostaria que esta fosse uma ocasião sem discussões, para variar.
— Mãe, estou chocado que este pensamento tenha sequer cruzado a sua mente
— Jack piscou para Mia.
- Tudo bem - disse ela, sem acreditar numa palavra daquilo. - Bem, desculpem, meus nenens, mas não há mais nada a ser feito aqui. O jantar vai estar pronto em alguns minutos..
- Oh. - Mia estava desapontada.
Elizabeth reuniu-se a seus filhos à mesa e os três olharam para a porta da cozinha, todos pensando a mesma coisa.
— Não, Abbey — gritou Emily —, você não está fazendo o que eu mandei - e desatou a chorar. Isso foi imediatamente seguido de uma alta gargalhada de Richard; ele devia ter dito alguma piada, porque era o único que estava rindo.
— Mas acho que é importante que todos fiquemos aqui de olho no jantar -acrescentou Elizabeth.
- OK, pessoal, o jantar está sendo servido - anunciou Elizabeth, e todos se dirigiram à sala de jantar. Houve um instante de confusão, como nos aniversários de criança, enquanto todos brigam para sentar ao lado de seu melhor amigo. Mia ficou satisfeita com sua posição afinal e acomodou-se com sua mãe à esquerda, na extremidade da mesa, e Jack à direita. Abbey sentou-se entre Jack e Richard, com uma carranca no rosto. Jack teria que ajeitar as coisas quando chegasse em casa.
Declan acomodou-se em frente a Mia e, ao lado dele, havia um lugar vago, onde Timothy deveria estar sentado, depois vinha Emily e Meredith, depois Clara. O pai de Mia cortou um dobrado sentando-se à cabeceira da mesa entre Richard e Clara, mas ele era um sujeito tão calmo, que era o melhor deles para aquela tarefa. Todos fizeram ”ooh” e ”aah” quando Elizabeth trouxe a comida e o aroma encheu o aposento. Mia sempre adorara a comida da mãe; ela nunca tinha medo de experimentar novos sabores e novas receitas, traço que não havia transmitido à filha.
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6/10 - 29.07.2013 - xoxoxoxo
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